Abordagem Junguiana


Também conhecida como Psicologia Analítica, Profunda ou Psicologia Complexa, é um ramo de conhecimento ou prática da Psicologia, iniciada por Carl Gustav Jung, que, dentre outros, enfatiza conceitos como inconsciente coletivo, sombra, complexo, sincronicidade e individuação – o que dá à vida um sentido teleológico, um sentido de finalidade. 

Este tipo de abordagem concede muita importância aos sonhos, às sincronicidades (coincidências significativas acausais) e expressões criativas/artísticas como meios a serem explorados no processo psicoterapêutico para ampliação da consciência.

Abaixo, são relacionados alguns dos conceitos utilizados pela Abordagem Junguiana (ordem alfabética): 

Complexo

Grupo de ideias ou imagens carregadas emocionalmente que atua de forma autônoma e, invariavelmente, se contrapõe a atitude perceptível da consciência.

Dito por Jung (p. 201), seria “[...] a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência.” Ou, ainda, em outra obra Jung (1991, p. 758) comenta sobre a autonomia do complexo “[...] Com isso se demonstra a autonomia do complexo funcional de uma atitude habitual: é como se uma outra personalidade se tivesse apossado do indivíduo, como se ‘outro espírito tivesse entrado nele’.” 

Quando ocorre a constelação de um complexo, invariavelmente, é porque alguma situação externa disparou um “gatilho” psíquico que revive ou atualiza determinados conteúdos estranhos à consciência entranhados na alma.

É de se destacar a autonomia do complexo. Quando um indivíduo é tomado por um complexo, ele fica a mercê dessa força psíquica, como um refém de uma parte de si mesmo. Fica sem ação, de tal forma “possuído”, que a energia da consciência não é suficiente para romper o poder subordinante do complexo ativo. Enfim, toda constelação de complexos redunda em um estado perturbado de consciência. Nessa situação, não somos nós que temos os complexos; mas, sim, eles que nos tem.

Consciência

Parte da psique composta por memórias, lembranças, pensamentos e sentimentos de fácil acesso. Seu centro organizador é o Ego (Eu). Normalmente, é mencionada em conjunto com o inconsciente, como par de opostos complementares.

Somente a partir dos conteúdos conscientizados o indivíduo pode exercer seu direito de escolha e renúncia. É-se refém dos aspectos inconscientes, pois a estes não foi dado espaço para emergirem à consciência.

 Jung (2000, p. 9) afirma, ratificando o acima exposto, que “O eu possui o livre-arbítrio – como se afirma –, mas dentro dos limites da consciência.”

Ego

O centro da consciência, invariavelmente, chamado de ‘Eu’. É tudo que o indivíduo sabe de si próprio, todas as características que acolhe como sendo suas. É um complexo, segundo a psicologia analítica, palpável, pois se identifica com o soma, com o corpo.

O Eu tem função importante na relação com o mundo externo e com o mundo interno (inconsciente). É um mediador, nestes casos. O Ego se assenta, de um lado, sobre o campo da consciência global e, de outro, sobre a totalidade dos conteúdos inconscientes.

Uma das dificuldades no processo terapêutico se dá quando o indivíduo considera que somente esse ‘Eu’ existe – descartando todas as demais particularidades da psique. 

Função Transcendente

É resultante de uma tensão, no primeiro momento, e, após, de uma união entre conteúdos inconscientes e a consciência. É a síntese de uma tese e uma antítese. A função transcendente, em sua essência, caracteriza-se por ser um aspecto de auto-regulação da psique e manifesta-se, basicamente, a partir de um símbolo. É uma ponte entre uma configuração psíquica e outro novo posicionamento oriundo de uma resignificação. Isso acontece porque o inconsciente se comporta de forma compensatória ou complementar à consciência e vice-versa.

Murray Stein (1998, pg. 205) conceitua a função transcendente como sendo “o elo psíquico criado entre a consciência do Ego e o inconsciente como resultado da prática de interpretação dos sonhos e da imaginação ativa, e essencial, portanto, para a individuação na segunda metade da vida”.

Procurar emergir conteúdos inconscientes no processo terapêutico para que ganhem espaço à luz da consciência do analisando é um dos objetivos do analista junguiano.

Homo Religiosus

Jung acreditava que o homem, nas profundezas da psique, é um ser religioso, e sua dinâmica (da psique) é impeli-lo para Deus – Imago Dei. É função do terapeuta facilitar ou instigar esse encontro – o religere –, pois é uma tendência arquetípica, primordial. Todo homem, consciente ou inconscientemente, almeja o sagrado, o numinoso.

Neste mundo contemporâneo a experiência com o sagrado que o homem tanto necessita está cada vez mais perdendo espaço à apologia ao consumo, competição e ao sucesso. Os rituais religiosos de passagem – que poderiam mediar esse contato – ficaram restritos a alguns escassos eventos e com falta de conteúdo iniciático.

Jung (2011, p. 509), a partir da sua experiência clínica, faz o seguinte comentário sobre a importância da religião ou religiosidade na vida do homem:

De todos os meus pacientes que tinham ultrapassado o meio da vida, isto é, que contavam mais de trinta e cinco anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa. Aliás, todos estavam doentes, em última análise, por terem perdido aquilo que as religiões vivas ofereciam em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum se curou realmente, sem ter readquirido uma atitude religiosa, o que, evidentemente, nada tinha a ver com a questão de confissão (credo religioso) ou com a pertença a uma determinada igreja.

Inconsciente

A porção da psique situada fora da consciência. Os conteúdos do inconsciente são constituídos por memórias reprimidas e por material, como pensamentos, imagens, emoções, que nunca chegaram à consciência.

Para a psicologia analítica, o inconsciente está dividido em inconsciente pessoal o qual aloja os complexos – ou como Jung (2006, p. 218) conceituou: “Os conteúdos são de natureza pessoal quando podemos reconhecer em nosso passado seus efeitos, sua manifestação parcial, ou ainda sua origem específica” –; e o inconsciente coletivo, que guarda as imagens arquetípicas e os instintos.

Quanto ao inconsciente coletivo pode-se afirmar que é composto por categorias herdadas, o “DNA psíquico” da espécie humana; nas palavras de Jung (2006, p. 234) “[...] nossa psique consciente e pessoal repousa sobre a ampla base de uma disposição psíquica herdada e universal, cuja natureza é inconsciente; a relação da psique pessoal com a psique coletiva corresponde, mais ou menos, à relação do indivíduo com a sociedade”. 

A matéria prima para o processo terapêutico reside no inconsciente. O indivíduo que almeja o autoconhecimento, necessita caminhar em busca de um Ego fortalecido para poder digerir os conteúdos inconscientes que precisam emergir à consciência para o bem do desenvolvimento da personalidade.

Individuação

É um processo que envolve uma consciência crescente da nossa realidade psicológica única, incluindo as forças e as limitações pessoais e busca uma meta psíquica – a realização do daimon interior.

Este processo dependente, e muito, da relação do Ego com o inconsciente. O diálogo fluído entre esses dois gigantes da psique corrobora com a migração de aspectos inconscientes à consciência, ratificando a necessidade natural do desenvolvimento da personalidade. O objetivo não é a perfeição, mas a completude – considerando a “capacidade” e limitações de “acolhimento” da consciência. Quando mais o Ego se coloca numa posição de humildade e disponibilidade às demandas inconscientes, mais contribui para o processo de individuação.

A individuação não deve ser confundida com o individualismo. A primeira busca atender as demandas da alma, se afastando dos valores coletivos, porém sem perdê-los ou afrontá-los. O individualismo, pelo contrário, é anseio egoico ou egocêntrico que rechaça os valores coletivos. Via de regra, quem entra no caminho da individuação devolve ou compartilha com a coletividade algo que apreendeu no percurso, como forma de “pedágio” pela sua abstenção do convívio coletivo. 

A atividade terapêutica precisa instigar a reflexão quanto à troca com a coletividade. Em algum ponto dentro da singularidade de cada um existe algo que somente aquela psique pode fazer pela evolução cosmos: o que será? 

O autoconhecimento e a busca de resposta para essa pergunta permearão o tempo todo o processo de individuação.

Numinoso

Deriva do latim numinosum e refere-se a um elemento, dinâmico, carregado de energia, independente da vontade consciente.

Descreve pessoas, coisas ou situações que têm profunda ressonância emocional, psicologicamente associadas a experiências transpessoais.

A experiência numinosa – ou com o sagrado – possui um poder diferenciado sobre a psique, com efeito, altera a configuração e amplia a consciência. 

A vivência desta experiência não é privilégio das religiões, mas é aconselhável que se dê com mediações e em “terreno seguro psicologicamente” – quando vivê-la foi escolha voluntária. O “Deus vivo” não pode ser olhado nos olhos, sob pena da dissociação ou desencadeamento de patologias psíquicas.

Inconscientemente, a busca da experiência numinosa é inerente ao ser humano por meio dos rituais, ritos de passagem etc. 

Persona

O termo persona tem origem latina que significa a máscara a qual o ator teatral colocava no rosto durante a encenação. Esse significado antigo esclarece bastante o sentido que esse conceito tem dentro da psicologia analítica.

Para a psicologia analítica, persona é o “eu” – geralmente as características tidas como ideais e mais distintas de nós mesmos – que apresentamos ao mundo exterior. A máscara utilizada para adaptação social. 

Cada meio ambiente demanda uma atitude (persona) diferente ou específica. Quanto mais for exigida determinada atitude, mais rapidamente ela se tornará habitual e confortável em termos psicológicos. Muitas vezes, a identificação com essa atitude “preferida” faz com que a “máscara” não seja trocada, mesmo em “papéis” e “palcos” distintos – i.e. o juiz exerce o papel de juiz no tribunal e em casa; o professor o é em aula e no trânsito etc.

Sentido Teleológico

Termo utilizado para explicitar uma finalidade para todas as coisas. O que é dirigido para um fim. Tudo tem um propósito, segundo este conceito – com ênfase, a vida.

Jung (p. 798) comenta que “A vida é teleológica par excellence, é a própria persecução de um determinado fim, e o organismo nada mais é do que um sistema de objetivos prefixados que se procura alcançar.”

A angústia que toma a grande maioria das pessoas, principalmente na segunda metade da vida (metanóia), é decorrente das perguntas que teimam em ecoar no nosso íntimo: ‘A que vim? Qual o meu objetivo nesta vida? Qual o sentido da minha vida?’. São questionamentos perturbadores os quais estão incubados na psique de cada um, que, mais cedo ou mais tarde, vem pedir respostas.

Uma vez que se busque o sentido da vida – sublinhe-se que não é necessário responder as perguntas acima com precisão cartesiana – já é suficiente para iniciar intuitivamente a viver a vida em seu sentido teleológico. 

Sincronicidade

Coincidência significativa acausal. Eventos objetivos e psíquicos acontecendo simultaneamente, sem relação de causa e efeito, mas com total correlação naquele momento distinto. Dito de outra forma, pode-se conceituá-la como sendo o encontro de um evento psíquico e de uma situação física correspondente, isto é, constituída de dois fatores: (1) uma imagem inconsciente alcança a consciência de maneira direta (literalmente) ou indireta (simbolizada ou sugerida) sob a forma de sonho, associação, fantasia ou premonição; e (2) uma situação objetiva coincide com este conteúdo.

A concepção desse conceito teve como base o entendimento de que no inconsciente há um tipo de conhecimento prévio dos acontecimentos, sem relação de causa e efeito – um tipo de “conhecimento do inconsciente”. 

A partir desse entendimento, Jung buscou amparo também na física moderna com o auxílio de seu amigo e colaborador, o físico W. Pauli. A física moderna “contribuiu” com novos paradigmas: tempo e espaço são relativos; e os pressupostos do indeterminismo e da incerteza.

Finalizando esse tópico, cabe salientar que existe uma diferença muito grande entre a sincronicidade e a simples coincidência. Pode-se usar um evento real acontecido no Rio de Janeiro em 2012 (desmoronamento dos prédios) para se criar cenários que possibilitam a distinguir esses dois conceitos. 

Sabe-se que, quando do ocorrido, um estudante de uma faculdade localizada em um dos prédios deixou de ir à aula exatamente no dia do desastre em virtude de ter ficado preso no trânsito (engarrafamento) – até aqui o relato condiz com a realidade. 

Se este indivíduo, naquele momento da sua vida, estivesse – consciente ou inconscientemente – passando por algum desconforto psíquico ou questionamento íntimo e esse fato, de alguma sorte, lhe sensibilizasse como um símbolo e redundasse em algum sentido subjetivo, aí se tem a sincronicidade. Se não, o momento em si (desastre), para este estudante, seria apenas uma coincidência (sem conotação pejorativa à percepção do indivíduo). 

Sombra

Aspectos ocultos ou inconscientes, bons ou maus, que o Ego reprimiu ou jamais os reconheceu.

É composta, em sua grande parte, de desejos reprimidos de impulsos não civilizados, de motivos moralmente inferiores, de fantasias e ressentimentos infantis; enfim, todas as características das quais ninguém tem orgulho de encarnar. Dessa forma, mais aprazível é enxergá-la no outro, por meio do mecanismo de projeção: o que não reconheço em mim, projeto no outro.

Jung (2000, p. 16) aborda a Sombra como “[...] um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais.”

Normalmente a sombra é identificada nos sonhos por pessoas do mesmo sexo do sonhador, invariavelmente com características que a deixam à margem da aceitação geral.

Sombra e Persona ficam em “lugares” diametralmente opostos da psique, sendo que a Persona sempre atua reprimindo a Sombra, que fica a espreita aguardando seu(s) momento(s) de revanche.

Temenos

Recinto que delimita e ao mesmo tempo faz subsistir o espaço do sagrado, ou seja, recinto sagrado que tem as funções de proteger e guardar, mas ao mesmo tempo objetivar. Esse símbolo é utilizado como metáfora para o setting  terapêutico, pois é um campo transformador, lugar seguro e acolhedor que propicia a intimidade necessária para o encontro analítico.